terça-feira, 31 de julho de 2018

Guedra




 Por: Valéria Capeto
          
           Em árabe, a palavra "guedra" significa caldeirão ou panela, que é carregado pelos nômades para qualquer lugar que se desloquem ou que se estabeleçam. Quando coberto por uma pele de animal esticada forma um tambor,  também chamado de "guedra".

        O guedra é originário do “Povo Azul”, que faz parte dos povos Bérberes, uma ramificação dos povos Tuaregues. E seu nome os distinguem dos demais povos nômades em função das suas vestimentas de coloração azul.

               Os grupos de “homens e mulheres azuis” habitam a região do deserto do Saara no norte da África (Mauritânia, Marrocos e Egito). Falam a língua bérbere e possuem uma escrita própria, que não é usada na comunicação cotidiana, mas marca de forma política e simbólica a identidade bérbere.

            O termo “povo azul” surge em função da produção do pigmento azul, utilizado para o tingimento de tecidos, obtido das pedras índigo que são transformadas em pó e é aplicado no tecido. Durante o processo de tratamento e uso do tecido, o pó acaba por se depositar na pele daqueles que o produzem, assumindo uma coloração azulada também. Essa coloração, além de ser considerada bonita e desejável pelos povos, age de forma muito eficiente como protetor da pele contra os raios nocivos do sol e do calor do deserto.

          Nessas sociedades são os homens que não dispensam o uso do véu azul índigo na cabeça. Além do véu protegê-los dos maus espíritos -  uma vez que esses podem penetrar no corpo principalmente pela boca e pelas narinas - também os protegem do sol escaldante e das rajadas de areia do deserto. Por isso, são colocados na cabeça na forma de um turbante, onde apenas os olhos ficam expostos. Quanto às mulheres, a dispensa do uso do véu se manifesta pelo fato de acreditarem que são elas as grandes conhecedoras dos mistérios da vida e, por deterem esse dom, são naturalmente protegidas dos espíritos malignos.

          A história sobre a unificação desses povos se inicia no século IV e é marcada pela presença de uma rainha, que foi a primeira a governá-los e era considerada a “Mãe de todos nós”.

        Constata-se que, entre os tuaregues, desde o início de sua história, até os dias de hoje há uma liberdade feminina. Estudos arqueológicos indicam que a descendência, herança e liderança são definidas por uma origem feminina. Dentro da pirâmide social e política, a mulher ocupa um lugar muito único, havendo um grande respeito a ela dentro dessas tribos. Elas gozam da liberdade de poder escolher seus parceiros, se relacionar sexualmente antes do casamento, participar de decisões da família e do seu povo. Além disso, elas são responsáveis por ensinar o alfabeto e disseminar a cultura e tradição do povo. 
     Os homens também detém uma posição de poder, fazendo parte do conselho. Normalmente são homens de negócios, grandes comerciantes e responsáveis pela função mercantil dentro da hierarquia social, além de serem conhecidos e temidos por suas habilidades como guerreiros do deserto.

O RITUAL DAS MULHERES DOS POVOS AZUIS


       A palavra ”guedra” para o povo azul, também tem o significado de “aquela que faz o ritual”. E seu principal propósito está na transmissão de boas energias, de amor e de paz para todos os presentes.
     O ritual é todo ritmado por palmas, pelo tambor (guedra) e pelo canto. Podendo participar qualquer pessoa, seja homem ou mulher, criança ou adulto, sem limitações de idade.

      Uma característica interessante na forma como se expressam durante o ritual é o fato de que no canto, normalmente, invocam o nome de Allah. Invocam a bondade divina para que seja compartilhada com toda a humanidade, ou ainda, expressam gratidão pela boa sorte ou pela realização de um pedido.

    Uma vez que o povo azul pertence ao grupo dos Bérberes, possuem costumes e tradições tão antigos quanto, e entre esses costumes há o respeito e a harmonia com os elementos da natureza, que é expressado em suas manifestações.

        O ritual é noturno, normalmente acontece em círculo, à luz do luar ou de uma fogueira. Apenas as mulheres dançam e se apresentam totalmente cobertas por um véu negro. Podem se colocar no círculo de joelhos ou em pé. A cabeça recebe um adorno feito de couro, arame, feltro, ou ainda um tecido decorado, além de receber conchas de cowrie, moedas de prata e pedras preciosas, que não apenas enfeitam o cocar, como também se entrelaçam com as múltiplas tranças do cabelo.

         Durante a dança elas batem palmas junto com os presentes, gritam e movimentam suas mãos, simbolizando as bênçãos que desejam para si próprias e para os participantes. O tambor (guedra), único instrumento utilizado no ritual, pulsa de acordo com a batida do coração. O véu negro que cobre a cabeça representa o desconhecido e a escuridão.

         A movimentação das mãos se inicia embaixo da cobertura desse véu e de suas roupas, na tentativa de buscar o caminho da luz. E, no momento certo e intuído, essas mãos emergem e saúdam os pontos cardeais, reverenciam os quatro elementos, o tempo (passado, presente e futuro) e emanam bênçãos. Com o aumento da intensidade do guedra, os movimentos se tornam mais frenéticos e a cabeça oscila de maneira vibrante, fazendo com que as tranças se movimentem de um lado para o outro. O ritmo segue a pulsação cardíaca, o aumento da sua intensidade também eleva o ritmo respiratório, até que a mulher cai em colapso se entregando ao transe.

        Para os povos bérberes, a dança é uma afirmação constante do que eles são, de suas histórias e suas tradições. Muitos a usam para celebrar colheitas, manifestações da natureza, comunicação, nascimento, casamento, bênçãos, entre tantas outras formas de expressão.

       Para o povo azul não poderia ser diferente. E o guedra representa a mais profunda expressão da alma dessas pessoas. É o elo direto deles com o universo.


 * Este material faz parte do seminário que realizamos a cada dois anos, com o intuito de enriquecer os conhecimentos sobre a cultura dos povos orientais, estimulando as alunas e professoras a mergulharem cada vez mais no universo feminino desses povos podendo traçar paralelos com a nossa cultura ocidental. Aqui acompanham algumas impressões das alunas que se dedicaram a essa pesquisa do Guedra.


Por Paula Romano: 

           A primeira vez que presenciei o ritual do guedra fiquei realmente muito tocada. Foi como se o som daqueles tambores estivessem ressoando dentro da minha alma. Ri, chorei, me emocionei e pude sentir que tudo aquilo fazia um sentindo enorme pra mim...

         Quando a Claudia Parolin me chamou para dançar com a Valeria Capeto aceitei na hora, e me senti muito feliz por ter tido essa oportunidade. E aí sim, quando eu dancei, pude sentir toda aquela sensação novamente só que foi muito mais intenso, parecia que toda a energia e calor se espalhava para todas as outras pessoas que estavam presentes. O som dos tambores e das palmas batiam junto com o meu coração, foi algo mágico, um ritual cheio de amor, uma paz que toca o nosso espírito.

       Pra mim foi uma experiência única, mística. Que me trouxe uma clareza espiritual enorme. Adorei ter participado desse ritual e aprendido um pouco mais sobre a cultura desse povo que tanto amo e admiro.

por Valéria Capeto:

         Quando me dispus a estudar as danças orientais ritualísticas incentivada por minha mestra, juntamente com uma parceira de dança, não bastava buscar o conteúdo da forma mais fidedigna e respeitosa possível. Mas, para trazer esse conteúdo para o corpo como proposta de finalização do trabalho, era primordial me permitir sentir, com todo o meu ser, aquela experiência que reunia a pesquisa sobre um povo muito antigo, com a minha busca pessoal.

      Apesar da dança ser simples na sua forma de expressão, ela possui significações, simbologias e tradições tão profundas, que mais importante do que descrevê-las é necessário senti-las.  Uma vez entregue a essa experiência, a gama de sensações são vastas. Senti-me forte, grata, com o corpo digno de dar e receber amor. Mas principalmente conectada com uma ancestralidade de um passado muito distante, que de alguma forma reverberou por todas as células do meu corpo. Foi uma experiência única, ficou registrada na minha alma, e que espero poder um dia vivenciá-la novamente.

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